Módulos do Curso
PARA SUPERAR CONFLITOS DE RELACIONAMENTO
Aula Virtual 1 - APRESENTAÇÃO (português)
IDENTIFICAR O PROBLEMA (I)
Tudo começa pela identificação correta do problema. Conforme nos mostra a conhecida piada do pedido de informação feito por um homem a um menino na estrada. O carro luxuoso pára, o homem na direção espera a poeira baixar. O menino, de calção, sem camisa e sem calçado, sente o ar geladinho quando o vidro do carro baixa lentamente. De seu interior uma voz de comando exige resposta à pergunta: “Para onde vai essa estrada?” E o menino: “O senhor identificou de forma errada o problema. A estrada não vai a lugar nenhum, nós é que vamos nela, o senhor nesse carrão com ar condicionado e eu a pé. O correto é o senhor perguntar: ‘Para onde eu vou por essa estrada?’”
“Engraçadinho!” vocifera a voz que sai daquele arzinho frio. “Menino! Como você se chama?” “Errou de novo. Eu raramente me chamo. Os outros é que me chamam com muita freqüência. A colocação correta do problema é: ‘Menino! Como os outros lhe chamam?’”
Portanto, muita atenção na identificação do problema. As palavras escolhidas deverão ser precisas.
(O CURSO SE ENCONTRA REGISTRADO NO ESCRITÓRIO DE DIREITOS AUTORAIS DA FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL/RJ)
IDENTIFICAR O PROBLEMA (II)
“Professor, parece até fingimento. Todos os exames foram feitos, não há motivo para essa mulher sentir dor em tantos músculos do corpo”. Respondo ao meu aluno de medicina: “Um caso assim desperta nossa curiosidade. Vamos procurar além da dor ‘fingida’, vamos em busca da dor ‘sentida’. Enquanto não identificarmos o verdadeiro problema, a paciente continuará a se queixar de dores pelo corpo.
No caso, trata-se de uma escritora iniciante que havia apostado todas as fichas na publicação de um livro nos Estados Unidos. A agente literária que havia recebido a obra acabara de devolvê-la com a frase lacônica: “Não adianta tentar mais, este livro nunca será publicado aqui”. As dores musculares são as “fingidas”. A dor “sentida” é a da expectativa frustrada, da desesperança. E são poucas as dores mais doídas do que a da desesperança.
Quando um aluno diz “Examinamos tudo, o paciente não tem nada”, respondo: “Quem não tem nada, não deixa sua casa à noite para vir ao hospital. Deixa-a para ir a um restaurante, a uma danceteria, quem sabe a um motel”.
Francis conta que começara a sair com todas as mulheres que lhe davam alguma abertura. Relacionava-se sexualmente e caía fora. Algumas nem o atraíam. Era casado com Beatriz, que conhecera desde a adolescência e que estava sempre a se queixar dele. Não era uma “companheira”, não podia dividir com ela seu dia-a-dia, suas preocupações e seus sonhos profissionais. Já pensara em se separar. Porém, mesmo sem ter filhos, achava a separação difícil em relacionamento tão antigo. No último ano, o casal se afastara ainda mais. Beatriz fora estudar em outra cidade. Encontravam-se em alguns finais de semana. “Desde então, doutor, tornei-me promíscuo. Esse é o problema”.
Francis espantou-se quando eu conjeturei que a promiscuidade, ao invés de ser o problema, poderia ser a solução. “Solução que não soluciona, Francis, que problematiza”.O problema era outro, precisávamos identificá-lo. Sim, o primeiro passo é identificar o verdadeiro problema.
Concluímos que ele vivia a “solidão de um homem bem casado”. Sim, aparentemente, estava muito bem casado. Porém, na prática, era, de fato, um solitário. Desejava buscar vínculo afetivo com outra mulher. Porém, se o fizesse, teria de encarar a separação. Deslocara a busca para o sexo. Sim, a solidão era o busílis da questão. Eis o verdadeiro problema.
SENTIMENTOS (I)
Determinados problemas despertam sentimentos quase intoleráveis. Precisamos, então, de um truque para não nos afogarmos neles. Nossa inteligência intrapessoal será chamada a funcionar.
Caro aluno, imagine que você é médico plantonista na emergência de um grande hospital. Um menino de dez anos é trazido por seu pai apresentando sinais de contusão generalizada. O pai intromete-se nas respostas do filho. Após afirmar que as lesões foram seqüelas de uma briga entre adolescentes, pede ao menino que confirme a história. Ao palpar o menino, você, médico, percebe irregularidades ósseas nas pernas, sugerindo calcificações múltiplas ocorridas há algum tempo. Ao raio X percebe deformidades nos extremos proximais de ambos os fêmures e em ambas as tíbias e perônios, como causa de fraturas e hematomas subperiostais ocorridos anteriormente. Imediatamente você suspeita de que o menino foi espancado e que vinha sendo espancado há bastante tempo. Pelas atitudes do pai, você suspeita dele. O menino é um menino triste, parece um velho sofrido.
Caro aluno, como você manejaria tal situação?
Faça uma pausa para refletir.
Você resolve chamar o pai para uma conversa em particular noutra sala. Ele foge das respostas, inventa histórias mirabolantes... Você passa a ter a convicção: trata-se de um homem espancador de crianças. Você percebe que já está, inclusive, ampliando a culpa dele: de espancador de um menino para espancador de crianças. Um crápula! Há quantos anos vem quebrando os ossos do filho pequeno?! Um monstro! Você se imagina atingindo-o com o punho fechado no queixo e jogando-o contra uma mesa de exames! Até que você reflete: como posso prosseguir na minha função de médico com tamanho sentimento de raiva?
Qual truque você usaria, caro aluno, para apaziguar sua ira?
Se o seu sentir continuar negativo e inadequado, você nada conseguirá fazer.
Faça uma pausa para refletir.
Um sugestão: coloque-se no lugar desse homem. Pense: em que situação eu agiria como ele? Em nenhuma! Sim, mas force a barra e imagine uma.
Bem... só se eu estivesse jogando tudo para cima. Se a vida estivesse numa m tamanha e eu estivesse à beira da morte. E, além do mais, eu usasse álcool ou drogas e chegasse em casa sem saber o que estava a fazer. No outro dia... ou me matava... ou trazia meu filho para o hospital. Juraria nunca mais fazer isso. Porém, mais adiante... tudo se repetiria...
Consideremos como positivo o fato de ele trazer o filho ao hospital. Não deixou que outro o trouxesse para tentar esconder. Sim, é possível. Mas isso significa que ele tem ainda uma esperança de ajeitar a sua vida. Caso contrário, não estaria ligando para mais nada.
Após identificar e lidar com seus sentimentos, você fala o que para ele?
Faça mais uma pausa.
Você poderia dizer: “Sei que o senhor está passando por uma situação muito, muito triste em sua vida. Os exames mostram que seu menino vem sendo espancado há muito, muito tempo. Ou seja, o senhor não pode nos contar toda a verdade. Eu entendo a sua necessidade de omitir. Quando o pai espanca, ele fica culpado, envergonhado, com medo da reação dos médicos e, naturalmente, tenta esconder.
Meu papel não é julgá-lo. O senhor nem precisa confessar para mim o que fez. Meu papel como médico é atendê-lo. Sei que o senhor não quer repetir isso. Para tanto, precisamos identificar o que mesmo se passa com o senhor..Para que a situação não se repita, não basta atender o menino. É necessário também atender, e não agredir, o pai. A capacidade de se solidarizar com o sofrimento de uma criança permitirá que aquele indivíduo na função de médico, função que lhe foi outorgada pela sociedade, adeqüe seus sentimentos às exigências do caso. Enfatizo: é fundamental para lidarmos com todo e qualquer problema a adequação de nosso sentimento.
SENTIMENTOS (II)
Todas as ocorrências de nosso dia-a-dia despertam sentimentos. Porém, não estamos habituados a identificá-los. Precisamos treinar.
Olho pela janela e vejo uma menina sentada sobre o muro de uma casa. Enquanto ela balança as pernas, um menino com um pedaço de tijolo raspa letras no muro. Vem-me sensação semelhante à que sentia na infância. Na praia, após o almoço, meus pais iam sestear e eu comia um sorvete à sombra da marquise do hotel. As pedras da calçada pareciam trêmulas. Que mormaço! O que sinto? Sinto paz, calor... O telefone me tira da janela.
Não temos tempo para observar nossos sentimentos em ocorrências cotidianas como essa. Mas é nelas que podemos treinar nossa capacidade de observá-los. Temos de treinar nossa capacidade de escutar aos outros e, muito importante, treinar a capacidade de escutar a nós mesmos. De identificar o sentimento que os problemas do dia-a-dia despertam em nosso interior.
Um exercício de empatia: deduzir o sentimento que o outro sente. Outro exercício de empatia: perceber o que nós sentimos frente aquele acontecimento.
No curso você treinará sob o título "dizer para si". Dizer para si de Cassandra, de Suzana, de...
Precisamos, portanto, identificar o sentimento que o problema desperta em nós. Precisamos adequá-lo, adaptá-lo, civilizá-lo para que ele não nos atrapalhe no manejo do problema e, ao contrário, para que ele nos ajude.
ANÁLISE
O médico vai conversar em particular com o menino espancado. Dirá que ele ficará no hospital por alguns dias não só para curar as lesões mas também, e principalmente, para ganhar tempo suficiente que permita analisar a situação e encontrar a solução para que tais agressões não se repitam.
A análise será específica ao caso: o menino participará do processo que visa entender os motivos que levam seu pai a agredir e, também, a conduta que ele, menino, poderá adotar para se defender. A análise será ampla: ele não está só no sofrimento, são muitas as crianças espancadas por seus pais, e os motivos mais comuns desta tragédia social serão discutidos.
A partir daí se chegará à solução viável. A prisão do pai? O tratamento do pai? A troca de lar do menino? A percepção de sinais de que o pai está voltando a se tornar agressivo e a adoção de uma conduta defensiva previamente estabelecida, como chamar familiar, vizinho, polícia, ir dormir na casa de um tio, simplesmente fugir...
Enfim, sem uma análise adequada, não se conseguem boas soluções.
Nesse processo de análise, utilizamos o bom senso. O bom senso é uma capacidade influenciada pelo meio em que vivemos. O bom senso é, também, um processo histórico. Se faço uma transação comercial nos dias de hoje, o bom senso manda que eu elabore um documento assinado. Há algumas décadas, bastaria obter a confirmação pela palavra empenhada, pelo “fio do bigode”.
Nesse processo de análise, também recorremos a certos modelos. Por exemplo, como meu pai, meu avô, meu professor, meu amigo entenderiam essa situação? O que diziam os filósofos a respeito? Os cientistas? Os líderes? O que diria Cristo? Buda? Ghandi? Churchil? O padre Anchieta? Tancredo Neves?
O que ensina a respeito as religiões? O catolicismo, o budismo, o espiritismo, o islamismo, os evangélicos, os gnósticos, as religiões de origem africana? Que análise fariam determinadas filosofias que transcendem o sectarismo religioso, que acreditam que todas religiões trazem luzes como a filosofia Seicho-No-Ie, por exemplo.
Que análise fariam filosofias não religiosas como o existencialismo, o utilitarismo, o prgmatismo?
Também observamos nossa intuição, fenômeno que aparece mais em pessoas idosas do que em jovens. Provém de vivências acumuladas no mundo interior. É uma análise lógica subconsciente. Não se percebe todo o processo, toma-se consciência apenas da conclusão: “Algo me diz que...”
Contudo, convém não esquecer que a análise intuitiva é embasada em dados passados. Complementa, mas não substitui a análise baseada nos fatos do presente.
Quando determinada análise não evolui, há que se começar de novo e com mais criatividade. A partir de outro ângulo.
Processo de análise:
BOM SENSO
MODELOS
RELIGIÕES
FILOSOFIAS
INTUIÇÃO
CRIATIVIDADE
SOLUÇÃO
A solução para um problema por vezes está bem longe de ser a considerada ideal. Aliás, o ideal é o ideal, não é o real, não é o possível.
Uma jovem no final da adolescência envolve-se com maconha e cocaína. Os pais fazem de tudo: bons psiquiatras, hospitalizações em boas clínicas. Nada dá resultado. Os anos de tormento familiar estendem-se. Aos vinte e quatro anos, a jovem principia namoro com um rapaz de trinta anos e, como num passe de mágica, abandona as drogas.Sua paixão pelo namorado era avassaladora. Ele gostava dela, mas não tanto e não admitia que ela usasse droga nenhuma. Caso a visse uma única vez usando maconha que fosse, o namoro estaria definitivamente encerrado. A família, finalmente, pôde retornar à paz perdida há tantos anos. Que alegria, a filha longe das drogas! Um acordo financeiro rolava às escondidas.
O namorado da filha, separado de um primeiro casamento, não gostava do trabalho. Costumava repetir às gargalhadas a frase feita: “Não gosto de trabalhar, mas admito que os outros trabalhem”. Além do mais, era aficionado por automóveis finos e corridas de kart. Para continuar o namoro salvador, fizera em sigilo uma proposta ao pai da namorada, que prontamente aceitara: dinheiro! Uma boa, periódica e regular quantia de dinheiro. “Doutor, é mais barato, bem mais barato do que pagar tratamentos, do que pagar os estragos que ela fazia quando com as drogas. E o meu descanso, nem se fala. Se o rapaz soubesse... poderia me cobrar bem mais”, disse-me o pai.
Em certa ocasião, telefonemas anônimos denunciavam que algum homem daquela família estava tendo um caso. O namorado da filha foi sincero com o sogro: era ele. Outro acordo: deslocar os indícios para que o caso parecesse ser do sogro... “Doutor, mesmo assim levo vantagem. Esse namoro não pode terminar. Minha mulher me xingará alguns meses... o que não é nada em vista da tormenta de se ter uma filha drogada”. Enfim, as soluções, às vezes, são decididas pelo critério: o menos pior é o melhor.
A solução pode ser, até mesmo, uma boa fantasia. Quem pode afirmar que existe vida após a morte? A crença de que existe não será a solução de um dilema aterrador via uma fantasia coletiva? E como ela faz bem.
As crianças encontram em seus brinquedos tanto o alívio para suas angústias quanto a alegria de viver. Ao crescer, vamos deixando de brincar. Não construímos mais castelos no chão, mas no “ar”. A criança brinca às claras; o adulto, às escondidas, em seu mundo de pensamentos. Nossas fantasias “corrigem” realidades insatisfatórias.
Nos anos de 1907 e 1908, Sigmund Freud escreveu o texto Escritores criativos e devaneios, no qual descreve a criação literária como uma continuação modificada do brincar infantil (NOTA 1).
Os escritores, os cineastas, fazem o trabalho por nós: criam personagens para que os usemos a nosso bel prazer. E muitas vezes, para dormir, nós mesmos somos os escritores: inventamos historinhas que nos maravilham e relaxam. Há sonífero melhor?
Artimanhas podem se revelar úteis. Luís Inácio é pai de Lúcia, proprietário de grandes fazendas e muito tolerante. Porém, já estava cansado dos telefonemas do seu genro reclamando das atitudes de Lúcia. Telefonou a ele: “Avisa a minha filha que, se continuar a te dar incômodos, será deserdada”.As soluções nem sempre são aquelas que gostaríamos.
No processo de solução:
A LIVRE CRIATIVIDADE
NOTA 1 - Freud S. Escritores criativos e devaneios. In: Obras completas. Vol. IX. Imago, 1969.
AÇÃO
Não basta identificar o problema verdadeiro, lidar adequadamente com os sentimentos despertados, analisá-lo e criar as soluções. É fundamental a ação.
Se não agirmos, perderemos a capacidade de compreender. É como se nosso cérebro nos dissesse: “De que adianta captar algo? Você não se mexe”.
Alexandre me contou que, quando tinha dezesseis anos, seu pai lhe perguntou de sopetão se já havia se relacionado sexualmente com uma mulher. Frente à resposta negativa, levou-o a um cabaré. Quando deu por si, Alexandre estava num quarto com uma mulher que nunca vira antes, bem mais velha que ele e de pouca beleza. A análise processou-se em seu subconsciente: a sua sexualidade pertencia a ele, não a seu pai. Naquele momento, percebeu em si uma intuição, apenas uma intuição, que dizia: “Fuja!” E ele agiu! Pulou a janela. Uma “fuga para a saúde”. Resgatou a sua sexualidade, que lhe estava sendo seqüestrada por seu pouco inteligente pai. Se não tivesse agido...
“Não quero ver olhos úmidos. Se quiserdes chorar, chorai ouro para os desamparados”, conclamou Galo Plaza, presidente do Equador, em 1949, na localidade de Ambato, após um terremoto devastador.
Lembram-se do “centralismo democrático” marxista? Lênin, partindo de algumas idéias de Marx e Engels, desenvolveu e organizou este princípio no texto que escreveu em setembro de 1902: “Carta a um camarada sobre nossas tarefas de organização” (NOTA 2).
Em resumo, todos na organização têm o direito de opinar e de votar. A tese vencedora deverá ser adotada em sua plenitude por todos, incluindo-se os contrários a ela. Em outras palavras, para onde vamos empurrar a “grande pedra”? Após os debates, vence a direção norte. Eu, que defendi o sul, devo empurrar a pedra para o norte com todo o meu vigor.
Uma ação será eficaz se determinada. É natural que possamos agir carregando dúvidas. Vamos para o rumo norte ou para o rumo noroeste? Todavia, se a ação decidida for para o rumo norte, todas as nossas forças devem colaborar. A energia que gastávamos defendendo dentro de nós o rumo noroeste deve, agora, ela também, voltar-se para nos ajudar a alcançar o norte. Nossa ação só será determinada se adotarmos o centralismo democrático em nossa organização interna.
Ação:
CENTRALISMO DEMOCRÁTICO
NOTA 2 - Lênin VI. Obras completas. Vol 7: 1-26, Editorial Progresso, Moscou, 1981. O texto incia o volume 7 e desenvolve e modifica o plano de estruturação do partido traçado por ele em “O que fazer”, texto concluído em fevereiro de 1902 e publicado no volume 6.
Exercícios
Caro aluno, reflita sobre os casos descritos a seguir e aplique o PSASA.
Você vai ser convidado no curso a fazer muitas pausas para refletir. É fundamental tal procedimento. Pois só aprendemos se nós construímos o aprendizado. Ou seja, quando você pára para refletir e encontrar por você mesmo as respostas das questões propostas você está de fato aprendendo, você está de fato mudando o seu comportamento. Portanto, não passe adiante! Reflita de verdade!
CASO 1
Aos dezenove anos, Armando (vamos chamá-lo com esse nome por mim inventado) trabalha com a enxada e, quando pára para enxugar o suor da testa que escorre pelos olhos e lhe atrapalha a visão, observa um caminhão a cruzar pela rodovia a sua frente e a fazê-lo sonhar o sonho de um dia, quem sabe, ser ajudante de caminhoneiro.
Aos vinte e dois anos, está casado, já é pai e já viaja ao lado de um motorista que transporta uma pesada carga. Aos vinte e seis anos, mora com a família nos fundos de um restaurante de beira de estrada onde se empregara como faz-tudo.
Numa tarde, Armando vê seu filho de quatro anos e meio levar um soco do patrão e cair desacordado sobre o chão da cozinha do restaurante. Corre a erguê-lo nos braços. Aos poucos o menino começa a retomar a consciência. O patrão, estatuificado a sua frente, aguarda sua reação...
Vamos aplicar o PSASA.
O problema: a agressão.
Faça uma pausa para pensar no sentimento que você teria em tal situação.
Raiva mortal?
O sentimento: raiva mortal.
E a análise?
Como você analisaria tal situação?
Pausa para refletir!
Bem mais jovem e bem mais forte, Armando sabe que com um ou dois golpes matará o bandido do patrão; que se o fizer, conclui em segundos, vai parar na cadeia; é pobre, ninguém vai tirá-lo de lá. Seu filho, na miséria, vai sofrer bem mais do que hoje.
Silêncio absoluto na cozinha. Os funcionários, semi-ocultos pelos cantos, observam, assustados, aqueles dois homens posicionados para o combate.O menino chora nos braços do pai.
Qual a solução?
Pausa para refletir!
“As crianças fazem mesmo a gente perder a cabeça”, comenta em voz baixa Armando, dando meia volta e dirigindo-se para os fundos.
A solução chega-lhe pronta e simples à cabeça: se quer justiça, precisa ganhar dinheiro. Até hoje, só pensara em realizar pequenos sonhos, ser ajudante de caminhoneiro, ter um emprego que pudesse reunir a família, nada mais. De agora em diante, está decidido: “Vou ter tanto dinheiro quanto este crápula que bateu no meu menino”.
Aquele homem humilde, e muito inteligente, identifica o problema e o sentimento. Faz, num relance, a análise da situação, alcança uma solução e... age!
Qual a ação?
Pouco tempo depois, consegue arrendar uma lancheria falida à beira da rodovia. Oferece aos poucos caminhoneiros que ali param comida, bebida e, mais que tudo, atenção e amizade. Conversa com eles sobre as saudades que sentem de suas famílias e da terra em que nasceram. Conhece-os pelos nomes. Pergunta-lhes sobre o estudo dos filhos, as insatisfações da esposa, as úlceras e as dores de cabeça. Chora com eles suas perdas. Chora porque junto chora suas próprias perdas. Armando também sente falta de sua terra, de seus parentes e de seus amigos de infância e de adolescência.
Bem, este homem, que aos dezenove anos era analfabeto e se escorava na enxada para secar o suor que escorria da testa e umedecia seus olhos, possui agora uma rede de restaurantes com algumas dezenas de empregados, que gostam muito dele.
Seu filho? Seu filho é universitário. “Tudo se decidiu naquele momento”, disse-me Armando. “Andava à deriva, atrás de pequenos e ingênuos sonhos. Aquele bofetão me acordou. Doutor, a vida é ação construtiva. Naquela cozinha, com meu menino nos braços, disse para mim mesmo que vida... vida é ação construtiva”.
Esse foi o jeito de dizer deste homem admirável. De dizer para si mesmo. Todas as suas forças se direcionaram no mesmo sentido e a “grande pedra” foi rolada.
CASO 2
Poderíamos dizer que Armando não agiu ou que postergou o ato de agir. Ao invés de agredir violentamente o patrão espancador, a ação esperada, nada fez. Depois, passou a agir indo atrás de um objetivo maior.
Não penso assim. Armando agiu ao não agir. Foi um momento criativo seu. Adotou a ação mais difícil de todas. Há situações em que o fazer é o não-fazer. Quem já passou por um assalto a mão armada entende bem o que falo.
Houve uma admirável “não-ação” que salvou a humanidade. Deveria ser mais lembrada. Mais que isso: deveria ser comemorada!
Voltemos ao dia 15 de outubro de 1962: os Estados Unidos descobrem que mísseis estão instalados secretamente em Cuba. Seguem-se treze dias de alta tensão entre o presidente John Kennedy e o primeiro-ministro soviético Nikita Kruchev.
Em outubro de 2002, um encontro em Havana reúne funcionários e oficiais dos dois lados que participaram daqueles incidentes. Thomas Blanton, diretor do Arquivo de Segurança Nacional dos Estados Unidos declara na ocasião: “O 27 de outubro de 1962 é um dia do qual nunca me esquecerei. Um rapaz chamado Arkhipov salvou o mundo” (NOTA 3).
Em 27 de outubro de 1962 o destróier norte-americano USS Beale lança bombas de profundidade contra o submarino soviético B59 na costa cubana, sem saber que ele carrega uma arma nuclear. Horas antes, um avião-espião norte-americano U-2 havia sido atingido. O Estado-Maior das Forças Armadas dos EUA recomenda ao presidente Kennedy o ataque aéreo e a invasão de Cuba.
Vadim Orlov, um dos oficiais que estavam no submarino B59 conta no encontro realizado em Havana, por escrito, o quão perto o mundo esteve por acabar: “Cargas de profundidade explodem bem ao lado do casco, para nós, a guerra havia começado”. Tinham de agir. O submarino leva consigo a autorização para lançar a arma nuclear mediante a aprovação de três oficiais a bordo.
Reflita: se você fosse um dos oficiais qual seria sua decisão?
Fidel Castro, perguntado a respeito, disse que se fosse um dos oficiais a bordo decidiria por lançar a arma nuclear.
Dois dos oficiais querem lançar a arma nuclear. Um terceiro, chamado Arkhipov, diz: “Não!” A solução melhor, deve ter pensado Arkhipov na ocasião, é o não-agir. O submarino pôs em ação a solução do não-agir e a humanidade não foi destruída por uma guerra nuclear global.
A lembrança de Arkhipov pode nos servir de exemplo quando estivermos envolvidos nos estresses de nosso trabalho. Até então eu perguntava quando alguém se queixava de que seu trabalho era muito estressante: “Na poltrona em que você se senta há um botão de ejeção? Um dispositivo de segurança para você sair à bala pelo teto e descer de paraquedas na rua da frente de seu prédio?” Agora vou falar em Arkhipov: cargas de profundidade estão explodindo e dois de seus colegas de trabalho já tomaram a decisão...
NOTA 3 - Thomas S. Blanton é diretor executivo do National Security Archive at the George Washington University e fez essas declarações para o Washington Post logo após retornar de Havana, onde se realizou The Cuban Missile Crisis, 1962: A Political Perspective After 40 Years. Leia mais no site: www.washingtonpost.com (Oct. 16, 2002).
CONSTRUINDO UM VÍNCULO
Um colega que foi meu aluno me contou que recém chegado a Madrid onde fora fazer um curso, conheceu um vizinho, Mário, que morava sozinho e que, mesmo com bastante idade, gostava de resolver seus problemas por ele mesmo. Estava, contou o vizinho, com dificuldade de resolver uma insonia que o afligia frequentemente. O problema, portanto era a insonia. Mas conversando um pouco mais, perecebeu que o vizinho madrilenho havia diminuido muito os seus vínculos: tinha dificuldades para caminhar, não podia mais sair para jantar a noite pois sofria de refluxo gastroesofágico e lia pouco pois suas vistas cansavam. O vizinho disse que a noite no apartamento solitário não tinha o que fazer e não tinha no que pensar. O problema verdadeiro era o vazio que sentia. Ou então, uma insonia causada pelo vazio interior.
E qual sentimento o vizinho espanhol despertou em meu ex-aluno?
Despertou nele aquele sentimento de admiração que se tem pelas pessoas que querem ser independentes e resolver por si mesmas seus problemas. O vizinho não era de solicitar a toda hora auxílio ao filho e ao neto que moravam em outra cidade.
Identificado o problema e percebido o sentimento, vamos para a etapa da análise.
Qual análise se pode fazer?
Mário gostaria de resolver por ele mesmo sua insônia. Não gostaria de solicitar a ajuda do filho ou do neto. Porém, como debelá-la se sua causa é o vazio e se o vazio é real? Tomando um medicamento? Não. Telefonando para seu filho? Não. Como ajudar alguém que quer resolver por si mesmo a insônia da sensação de vazio sem medicamento para dormir e sem a presença do filho e do neto?
Qual a solução?
Solução: ajudando-o a se reunir com os seus vínculos do presente e do passado, a povoar o vazio com as vozes que o acompanharam ao longo de sua longa vida. Ele mesmo se ajudará a sair da solidão e a dormir.
Como?
Falando. Se a solução é essa, qual é a ação?
Qual a ação?
A ação é fazer Mário falar de seu presente e de seu passado através de perguntas e de uma escuta interessada.
O homem idoso conta do filho, do neto, de como era Madrid quando ele era jovem e possuía uma turma de amigos, de seu tempo no exército, das vezes em que fora importunado pela ditadura de Franco. Vinte minutos se passaram e Mário pede desculpas, o sono o obriga a interromper a conversa.
É verdade, nem sempre estimular alguém a falar de si debelará a insônia. Quando uma abordagem falha, inventa-se outra.
Um vínculo foi construído. Conta meu ex-aluno que, ao atravessar a Plaza Mayor, após saborear “escalope de ternero” no Botín, aprendeu de seu vizinho e amigo que, numa ditadura, o pior não é ser impedido de dizer, mas ser obrigado a dizer. Sim, “o outro é professor”. Aliás, Mário também considerou o novo amigo brasileiro seu professor: “Aprendi que, quando a insônia é devida à solidão, posso resolvê-la como gosto, sozinho, sem pedir ajuda. Basta recordar. E tenho muito a recordar”.
AMANTE SOBRE AMANTE
Um homem, ao descobrir que sua mulher estava com um amante, arruma uma amante para si. E imediatamente faz com que todos saibam dela. O casamento termina. Amigos e parentes ficam com a idéia de que o motivo da separação foi o fato dele ter uma amante e não o fato dele ter sido traído.
O que você acha dessa solução inusitada? Criativa?
GULA
Na época em que Berto tinha dinheiro, trocava de carro a cada dois meses. Sempre carro novo. Trocava de mulher também. Agora, aos quarenta e oito anos, trabalhando para pagar as contas no fim do mês, está sem carro, sem mulher e com cinco filhos, cada um com uma mãe diferente. De sua gula, restaram a obesidade e o exagero no beber cerveja.
Mas Berto não é um irresponsável, preocupa-se com suas dívidas e envolve-se por inteiro com os problemas dos filhos. E problemas não faltam. Alguns de seus filhos são adolescentes, outros, adultos jovens. Berto procurou-me devido a preocupações com eles: um fuma maconha, uma está namorando um homem casado e bem mais velho, outro foi jogar futebol na Costa Rica e há meses não manda notícia. Ainda há o problema daquele que está internado numa clínica psiquiátrica devido a um surto de euforia e por não dizer coisa com coisa. “É o mais parecido comigo”, explica-me. “Eu, por muito tempo, fui meio eufórico, mas sempre disse coisa com coisa, nunca precisei ser internado”.
Berto não perde o bom humor nem ao examinar suas tragédias. “Doutor, meu problema é a gula. Queria tudo o que via. Um carro novo, uma mulher nova, um negócio novo. Tive muito dinheiro, muita mulher, muito carro. Me considero um sujeito inteligente e de sorte. Mas, com muita ex-mulher e com cinco filhos grandes, não há inteligência e sorte que resolva”.
De alguns anos para cá os gastos aumentaram muito, e Berto acabou descapitalizando suas empresas. Agora só lhe resta uma, que, por sinal, “vai mal das pernas”. “Doutor, antes realizava minha gula na vida real, agora me restou a fantasia. Deito na cama e me imagino com um Alfa 147 azul gabbiano. Ontem me imaginei com um helicóptero Bell-Jet Ranger. Mulher, então, todas as que aparecem nas novelas eu trago para a minha cama”, ri Berto, um sorriso que revela a falta de dois dentes. Está obeso, a barba por fazer.
Berto examinou as circunstâncias da vida de cada um dos cinco filhos e as atitudes que poderia tomar. E também parou para pensar nele.Qual o verdadeiro problema de Berto?
Seu problema: a gula.
Qual sentimento habita o interior de Berto?
Sentimento: no seu interior habitava uma sensação de que tudo poderia conseguir e de que tudo era mais fácil para ele do que para os outros.
Qual análise podemos fazer?
Prezado aluno, reflita e elabore sua análise da situação vivida por esse homem imaginado por mim a partir da realidade da vida.
Análise: Berto apresentou, quem sabe ainda apresenta, o que em psiquiatria chamamos de “hipomania” (NOTA 4). Seu comportamento não foi burilado por seus pais; sua família de origem era muito desorganizada, muitos irmãos, cada um para um lado, pais pouco presentes.
Qual é a solução mais adequada?
Faça uma pausa para refletir.
Uma das várias soluções: lembrar-se sempre de que seu problema é a gula; talvez tenha de fazer uso de um medicamento antimaníaco; organizar-se para evitar a bebida e diminuir a comida; continuar com o truque das fantasias enquanto elas forem necessárias. “Doutor, é muito mais barato fantasiar”, ri Berto.
E a ação?
Pausa! Mais uma!
Ação: pôr em prática as soluções apontadas e ser rígido quanto à sua organização pessoal; sua vida tornou-se muito complexa, tudo tem de estar agendado; quanto mais o defeito da gula for perdendo espaço em sua mente, mais simples e leve sua vida irá se tornar.
Rindo, Berto segreda-me sua última fantasia gulosa: ele com quinze mulheres nuas numa piscina aquecida localizada ao ar livre, sobre uma montanha. Perto de si, coxas bem torneadas, olhos azuis, olhos negros, tiaras brilhantes, bundinhas arrebitadas... Ao longe, lá em baixo, um mar verde-claro hospeda seu iate de sessenta metros proa-popa.
NOTA 4 - Na hipomania o indivíduo apresenta um aumento de energia e de atividade, seu estado de humor é levemente exacerbado, acha as coisas fáceis, sua sociabilidade está aumentada, possui marcada sensação de bem estar e de eficiência física e mental. Esta é a chamada boa hipomania. Na ruim, além do já descrito, o indivíduo é também irritado, grosseiro, impositivo.
A MORAL DO MÉDICO
Atendo ao telefonema de um colega sobre um paciente comum e saio do consultório lembrando uma passagem de sua vida de médico que ele havia me contado.
Oftalmologista de trinta e poucos anos, vamos chamá-lo de Ricardo, recebe uma mulher jovem, Ana Lúcia, como paciente em primeira consulta: “Não estou vindo aqui para consultar, já o conheço de vista da cafeteria próxima daqui”. O oftalmologista recorda-se de já tê-la visto e de que a achara uma mulher atraente. “Meu marido e eu não mais nos amamos. Mas tenho uma filha e não tenho profissão. Não convém me separar”. O médico observa-a em seu decote chamativo e, de relance, espia suas belas coxas. “Vou direto ao assunto. Preciso de um amante. Um homem discreto e bonito, como você. Com certeza, posso confiar que jamais revelará...” Ricardo é pego de surpresa.
Sente atração por ela. Suspira.
Caro aluno, o que você faria se estivesse na pele desse nosso personagem real?
Pausa para refletir.
Aproximar-se-ia daquela jovem? Trocaria o primeiro beijo? Ou buscaria subsídios em sua própria moral para bem decidir? Caso opte pela moral das conseqüências, rapidamente as avaliaria. O que seria melhor para você, para Ana Lúcia, para...Bem, voltemos ao caso real.
O oftalmologista lembra-se do Código de Ética Médica e da norma que havia adotado: jamais se envolveria com uma paciente. Ou seja, busca dentro de si a moral das normas.
E o que ele diz para ela?
“Bem... confesso que fui pego de surpresa”, diz ele, procurando ganhar tempo para organizar melhor suas colocações. “Na cafeteria, muitas vezes converso com mulheres. Colegas, conhecidas, algumas que passo a conhecer ali mesmo. Por que você não me procurou na cafeteria?” “Não sei... aqui é mais discreto”. “Mas você também conversa vez por outra com algum homem num lugar público?” “Sim”. “Então?”
Após algum tempo em silêncio, o médico pergunta se ela não está em dúvida em relação a ter ou não um amante. Ana Lúcia reconhece que sim. “Se você tivesse certeza de que me queria como amante teria me procurado na cafeteria. Aqui, no consultório, talvez o que você mais queira seja conversar sobre essas e outras dúvidas de tua vida. Quem sabe você viu em mim aquele médico conselheiro, confiou que eu seria capaz disso?”
A paciente permanece um tempo quieta. Seus olhos umedecem: “Quero muito falar sobre isso com alguém. Mas com quem, com quem iria falar?” A conversa prolonga-se, o médico ouve algumas das muitas dificuldades que aquela jovem mulher enfrenta: não tem mais prazer sexual, dera para fumar maconha às escondidas...
A moral das normas ajudou o oftalmologista a permanecer em sua função. A maturidade também. Leia-se: princípio do prazer versus princípio da realidade. A capacidade de tolerar frustração também influiu.
Imagine-se na praça de alimentação de um shopping. De repente, senta-se a sua frente uma bela mulher e lhe pede para ser sua amante. Como “em milagre demais até santo desconfia”, você também desconfia. Ninguém chega assim, dessa forma. Há, pelo menos, uma troca de olhar, uma conversa amena sobre coisas banais... uma paquera, mesmo que curta. Quem chega de forma tão direta é porque, no mínimo, está tão ansioso e carente a ponto de “colocar a carroça na frente dos bois”. Ou pode se tratar de algo mais grave: de alguém que perdeu o juízo de realidade pelo uso de drogas ou por apresentar um quadro psicótico.
Eis a importância de um código moral, da maturidade, também de algumas qualidades humanas, entre as quais a tolerância à frustração, da inteligência emocional, que nos permite ir devagar, observar, ouvir e ser capaz de se colocar no lugar do outro. De se colocar no lugar dessa mulher que está a sua frente propondo-se a se envolver com um estranho. Uma pessoa que, certamente, sofre algum tipo de dificuldade.
Situação semelhante à que acabo de relatar foi vivida por Moacir, vou chamá-lo assim, um homem de quarenta e poucos anos. A mulher que se sentou a sua frente era jovem e atraente. Moacir aceitou a oferta. A mulher, semanas depois, alegou estar grávida dele. Será que a camisinha rompera? Ela quis lhe extorquir dinheiro, caso contrário contaria à sua esposa. Ele estava com problemas financeiros e, sem saída, contou para a esposa. A chantagem não deu certo e a mulher disse para ele: “Tudo bem, deixa para lá. Eu já ganho bem com os quatro que me dão dinheiro todos os meses com medo de que eu conte às suas mulheres. Um deles é médico, fisguei-o numa consulta em seu consultório”.
Dirá outro: “Mas esta aí apresentava personalidade anti-social. E se ela fosse apenas um pouco ansiosa e carente? A vida é para ser vivida”. Tal argumento tem a sua lógica. A decisão é sempre individual. Refiro-me à situação do shooping. Na situação vivida no consultório médico, a decisão não deverá ser individual. Terá de respeitar o código profissional, o Código de Ética Médica. Pessoas pensaram para elaborá-lo, mediram os prós e os contras.
PROBLEMAS NO TRABALHO
Caro aluno, venha comigo à faculdade de medicina. Já fui professor de aproximadamente 3.000 médicos. Coisas da idade. Portanto, sinta-se como eu, em casa.
O jeito de fazer o Mário dormir lá em Madrid me fez lembrar de outro jeito que aprendi com um professor. Conto aos meus alunos de uma aula prática e espontânea sobre a relação do médico com seu paciente que tive na faculdade.
Aguardava o dr. Milton ao lado da cama de uma jovem que chorava e se contorcia de dores. Sua mãe a consolava sem sucesso. Meu professor chega para a primeira consulta, aperta sua mão e diz: “O pior já passou”. “Como passou se eu estou aqui desesperada de dor?!”, reclama ela aos prantos. “Passou, sim”, afirma ele. “Até agora você sofria sozinha com sua mãe. Agora você tem também a mim, aos colegas de outras especialidades, que, se necessário, vou chamar, você tem muitos ao seu lado, você tem toda a medicina, com toda sua história e com todos os seus avanços”. Ao final da consulta, fechamos a porta do quarto com vagar para não acordar aquela jovem que dorme a sono solto.
Entre as tantas histórias vividas e contadas em aula pelos alunos, uma me fez rir. Uma sobre problemas no trabalho. Quem não passa por problemas no trabalho?
Coloquemo-nos no lugar de um médico formando que ouve do rapaz sentado num banco do corredor do hospital: “Ei! Goiaba! Goiaba!” O rapaz está agarrado num par de muletas. Aguarda um exame. “Ei! Goiaba!” “Parece que é a mim que ele chama”, você murmura incomodado e se pergunta o que fará frente àquela inusitada e gratuita agressão. “É a mim que você chama?” “Sim, procuro alguém que me informe o horário de meu exame”. Você vacila entre reclamar da agressão ou deixar por isso mesmo.
Acaba falando: “Vem cá, por que me agredir gratuitamente? De onde tirou essa de ‘Goiaba’?” “Agressão?!” espanta-se o rapaz agarrado às muletas. “De jeito nenhum. Na minha casa todos temos apelido. Meu irmão, chamamos de Goiaba. Achei o doutor parecido com ele”. “As pessoas não gostam de ser apelidadas, mais ainda em se tratando de estranhos”, continua você a reclamar. “Desculpe, estou tão acostumado que não me dei por conta”. Você já está se retirando, quando por curiosidade pergunta: “E o seu? Qual o seu apelido?” “Eu? Eu sou o Podre”. “Como?” “Podre!”, grita o rapaz. E agora? O que fazer?
Ou seja, não era agressão. Era um jeito grosseiro de viver trazido para o corredor do hospital. Mas não era não agressão. A importância de, em vez de tomar uma atitude impulsiva, escutar. Sim, quantos problemas são evitados quando se escuta um pouco mais e mais um pouco.
PRECISÃO NO DIZER
Qual análise podemos fazer?
A senhora L. está doente. Seu cérebro não a ajuda a perceber adequadamente a realidade. Seu cérebro está sofrendo.
Qual a solução?
Precisamos conhecê-la melhor. Sua vida, seus vínculos. Mas não devemos exagerar, extenuá-la com perguntas. Afinal, seu cérebro está sofrendo. Afinal, ela está desconfiada, ficará desconfiada conosco se a tivermos interrogando. Aqui entra um conhecimento técnico. A senhora L. está num momento psicótico. Psicose é um estado em que a pessoa confunde realidade com fantasia. O que ela imagina é. O estado psicótico desaparece, felizmente, com o uso de medicamentos que regulam a alterada bioquímica cerebral. Eles são chamados de antipsicóticos. Em boa parte dos pacientes, em cinco dias os sintomas principiam a desaparecer. Portanto, a solução é medicá-la.
Porém, como fazer que ela aceite a medicação?
Se digo que ela está paranóide, fora da realidade, que tudo não passa de imaginação doentia, assim como a vizinha havia dito, passarei a ser mais um perseguidor perigoso.
Qual o jeito de dizer?
Como você diria?
Não vá adiante na leitura. Primeiro, pense nas palavras que você diria para esta senhora.
Vamos a ação!
“A senhora faz bem em trocar a fechadura e em colocar um selo na porta. Isso a deixará mais segura para dormir. A senhora precisa dormir e fortificar seu cérebro para lidar com o momento difícil que está passando. A senhora não pode se enfraquecer física e mentalmente”. Ela concorda e pede: “Doutor, o senhor pode me dar algum remédio que me faça resistir ao veneno”. Por veneno podemos entender a paranóia. A paranóia que envenena seu cérebro. “Posso sim”.
A paciente toma o medicamento antipsicótico. Após cinco dias, começa a se sentir tranqüila. No décimo dia, engole a água do mate calma e em paz, com o sentimento de que a vizinha lhe quer muito bem. Afinal, sempre fora uma amiga de confiança.
FALANDO COM QUEM DELIRA
A propósito de mate, tomo o meu, como sempre faço nos intervalos entre as consultas, e penso no conteúdo de uma aula que deverei ministrar na próxima semana na disciplina de psiquiatria. É sobre como conversar com uma pessoa que está fora da realidade, apresentando algum tipo de delírio ou idéia delirante como no caso da paciente anterior.
Explico: uma idéia delirante ou delírio consiste numa falsa crença, não corrigida pela confrontação com a realidade, que tende a se expandir no interior do indivíduo e ocupar um espaço muito grande em seu pensamento. Os delírios mais comuns são os de grandeza e os paranóides.
1. Nunca tento argumentar racionalmente persuadindo a pessoa a se convencer de que sua idéia não é real. Se o fizer, ela defenderá com cada vez mais tenacidade a legitimidade de sua idéia. Se o delírio é de perseguição, passarei a ser visto como um de seus perseguidores.
2. Escuto com paciência a pessoa. Observo o conteúdo do delírio e os sentimentos que o acompanham: raiva ou medo, por exemplo.Comento com a pessoa o sentimento presente. Por exemplo: “Quando eu entro na sala de aula, o professor entra na minha mente e lê meu pensamento”. Pergunto: “E o que você sente nesta hora?” E ela: “Sinto medo”.
3. Não me imponho a obrigação de dizer alguma coisa. O fato de estar com ela, de ouvi-la lhe fará bem. A pessoa não se sentirá mais sozinha e sem ninguém a escutá-la.
4. Não entro no delírio. Digo que não vejo as coisas como ela está vendo. Mas sinto o quanto ela é honesta ao descrever a sua visão.
5. Não rio automaticamente. Normalmente rimos quando alguém diz algo que nos parece engraçado. Porém, no caso, o engraçado pode não ser engraçado para a pessoa. Pode ser a sua crença.
6. Respeito o jeito da pessoa. No caso de delírio paranóide, por exemplo, a pessoa necessita se manter mais distante, mais afastada das pessoas. É importante respeitar isso.
7. Uso-me como instrumento de avaliação. Aquilo que sinto no contato com a pessoa pode ser o que todos sentem. Se sinto medo, pode ser que todos sintam medo. Assim dá para entender por que a evitam. Se me sinto seduzido por seu delírio de grandeza, isso pode também estar a ocorrer com seus familiares.
Várias situações médico-psiquiátricas levam a pessoa a apresentar delírios: esquizofrenia, transtornos delirantes persistentes, transtorno afetivo psicótico, uso de certas drogas, entre outras. Algumas são de evolução crônica: os familiares e os amigos necessitam achar um modo de conviver com a idéia delirante sem entrar em atrito e, ao contrário, mantendo a maior proximidade afetiva possível. Há casos em que, excetuando-se a idéia delirante, o indivíduo não apresenta outros problemas.
PROBLEMAS NO TRABALHO
A avó, cansada de esperar pelo atendimento da neta febril, brada: “Vocês são todas umas vagabundas”. De plantão, estão uma médica assistente e duas médicas residentes. E mais um sextoanista, o menos graduado e o único do sexo masculino. “Sim, vocês são todas umas vagabundas”. E olhando em direção ao sextoanista: “Menos o doutor aqui, o doutor, a gente vê que é boa gente”. E agora? O que fazer?
O que você faria nessa situação? (NOTA 1)
NOTA 1 - Na aula, concluímos que o melhor era o humor. Na hora, não fazer nada. Ou melhor, conversar com ela normalmente sobre os problemas da neta. Mas, depoois, rir. Sim, rir. O humor é uma boa maneira lidar.
SEMPRE HÁ REPARAÇÃO
O médico formando fora chamado pela madrugada para atender um paciente idoso hospitalizado devido a um quadro grave de insuficiência cardíaca. Tomou algumas medidas. Duas horas depois, novo chamado: o quadro havia se agravado e, transferido para a CTI cardiológica, o paciente acabara de falecer.
O médico formando sente-se culpado: “Não devo ter avaliado adequadamente o paciente, pois não percebi que seu estado era tão grave. Deveria tê-lo transferido bem antes para os cuidados intensivos da CTI. Talvez tivesse sobrevivido. Professor, como começar a profissão já com esse peso na consciência?”
Difícil dizer se houve realmente erro no caso. Mas vamos considerar que sim. Só os corajosos reconhecem seus erros. E eles são poucos. Não é por outra razão que se diz: “Errar é humano, reconhecer o erro não”.
“Sempre há reparação”. “Mas, professor, o paciente morreu?” “Sempre há reparação!”
Passo a falar aos meus alunos sobre Eckels, personagem de Ray Douglas Bradbury do conto “Um som de trovão” (NOTA 2).
Faço uma leitura própria do texto. Estamos no ano 2055. Com o avanço da técnica, já fora possível construir uma máquina do tempo que permite aos habitantes da Terra organizarem sofisticados safáris ao passado. O animal escolhido era caçado segundos antes da hora em que iria naturalmente morrer. E havia que se ter extremo cuidado para não matar mais nada. Nem um rato. Porque matando um rato todas as demais famílias oriundas desse rato não existiriam. Por falta de dez ratos, uma raposa morre. Por falta de dez raposas, um tigre morre de fome. Dali a milhões de anos, um homem das cavernas sai à caça e não encontra o tigre que iria encontrar e naturalmente comer. Esse homem morre antes de reproduzir. Significa que milhares de homens não mais nascerão. Um povo todo não existirá.
Eckels não deve pisar fora de uma plataforma suspensa. Ocorre que ele, num erro involuntário, se desequilibra e pisa com a bota direita a relva.
De volta ao ano 2055, Eckels observa que a sala de onde havia partido estava lá, mas não era exatamente a mesma. O mesmo homem estava sentado atrás do mesmo balcão, mas o mesmo homem não estava sentado exatamente atrás do mesmo balcão. O cartaz de propaganda do safári estava lá, mas algumas letras eram estranhas.
Eckels imagina o pior. Examina seu calçado. Vê barro embaixo de sua bota. Retira-o e verifica que, misturado com ele, há uma borboleta morta. Que horror, matara uma borboleta.
Matar uma borboleta não podia ser tão importante assim! Podia! O planeta não era mais exatamente o mesmo. “Não posso fazer a borboleta viver de novo. A Terra será outra para sempre. Não há reparação”, geme Eckels. Ajoelha-se e espera por Travis, que agarra o rifle, faz pontaria e puxa o gatilho. O som que se ouve também está diferente. Não é o som que Eckels reconhece ser o de um tiro. O último som que Eckels ouve antes de morrer é um som de trovão.
A morte de Eckels, de algo adiantou para a humanidade que vive em 2055? Só uma atitude seria positiva. Eckels suportar seu erro, permanecer vivo e reparar.
Reparar não significa ressuscitar a borboleta, nem voltar no tempo histórico. Tarefas impossíveis. Sei que, quando erramos, “nosso planeta” nunca mais será o mesmo. Será mais triste. E nós seremos mais humildes, mais cuidadosos e, quem sabe, mais criativos.
Na medicina reparamos reorientando o tratamento do paciente vítima de nosso erro. Como nem sempre isso é possível, reparar significa também beneficiar mais e mais nossos futuros pacientes.
Na vida fora da medicina também. Quando o problema é um erro que cometemos com alguém, alguém que já não mais podemos encontrar, o sentimento de culpa pode ser substituído pelo sentimento de reparação criativa.
Analiso a situação: se não posso mais encontrar aquela pessoa, posso encontrar outra. Quando erramos com um ser humano, erramos com a humanidade.
A ação que devemos adotar é a ação que beneficie outro ser humano. Portanto, em tais situações é importante transformar o sentimento de culpa suicida em reparação criativa. E é fundamental agir. De que adianta nos ajoelharmos e ouvirmos saindo do rifle de Travis apontado em direção à nossa cabeça um som de trovão. Se adiantasse...
PROBLEMA: errar com alguém.
SENTIMENTO: culpa.
ANÁLISE: quando erramos com um ser humano, erramos com a humanidade.
SOLUÇÃO: reparação criativa.
AÇÃO: beneficiar aquele que foi vítima de nosso erro; beneficiar outros seres humanos.
SEMPRE HÁ REPARAÇÃO !
NOTA 2 - Bradbury RD. O som de trovão. Em: As maçãs douradas do sol. Editorial Caminhos, 1989.
APEGO VERSUS AMOR
Uma mãe telefona, quer marcar outro horário, voltar a conversar sobre a síndrome do ninho vazio. Diz que lhe fez bem perceber que não sofre por amor e, sim, por apego. Seu único filho foi para longe atrás de seus sonhos, está alegre e empolgado. Quem ama sente naturalmente a falta, mas fica feliz. O importante é percebê-lo entusiasmado, levando uma vida produtiva. Se isso for longe... paciência. No amor há empatia.
Em contrapartida, o apego, ah! esse é terrível. O apego ao único filho, ao sobrenome, à beleza juvenil, ao namorado da adolescência, à rua da infância, à cidade natal, ao relógio de parede da casa da avó que está a enfeitar a parede da casa da irmã, ao casaco que era do pai... Ah! É terrível. O amor ao único filho, ao sobrenome, à cidade natal... o amor só faz bem.
Portanto, numa relação pode haver:
amor e desapego
amor e apego
apego
desapego
A BOA PAIXÃO
Paixão, todos sabemos, é, em grande parte, produto de nossa imaginação. A boa paixão é a imaginação construída sobre a realidade. A má paixão é a imaginação que eclode no vazio. É o “castelo no ar”.
A boa paixão exige correspondência e depende de uma escolha adequada. A propósito, procuro e encontro um livro de Robert Akeret, escritor e terapeuta. Charles, homem adulto e jovem, alto e forte, cabelos longos, artista de circo, procura um terapeuta alegando viver situação perigosa. “É domador de leão? Equilibrista?”, pergunta-se o terapeuta. Nada disso. “Vivo uma paixão perigosa”, explica Charles. Trata-se, então, de outro perigo, perigo do coração. “Mas ela é maravilhosa, belíssima”, diz alcançando uma foto ao terapeuta. “Uma ursa?!” Sim, é a foto de uma enorme ursa polar que se chama Zero. “É provocativa, sedutora. Desejo-a loucamente”, confessa Charles. “E ela?” “Ainda não conquistei seu coração”.
Noutro dia, Charles comparece à terapia com o ombro enfaixado. Entrara na jaula de Zero e não fora bem recebido. “Que esperava que ocorresse entre vocês dois?”, pergunta o terapeuta. “Bem, eu estava excitado sexualmente. Mas me precipitei, ela não estava suficientemente preparada. Os riscos do amor, doutor”. (NOTA 1)
Sei que nem sempre nos apaixonamos por quem nossa mãe, nosso pai... nossos avós... com toda sua sabedoria, escolhem para nós. Nem sempre fazemos boas escolhas. Às vezes, escolhemos alguns “ursos”.
No Museu do Louvre há um quadro famoso de Theodore Gericault: A jangada do Medusa (NOTA 2).
Uma curiosidade: o pintor era aficionado do boxe. Em 1809, o boxeador norte-americano Molineaux chegou a Londres e, depois de vencer dois ingleses, desafiou Cribb. A histórica luta ocorreu em dezembro de 1810, num dia frio e chuvoso. Apesar disso, um público de mais de vinte mil pessoas se fez presente. Géricault estava lá. Depois, imortalizou a luta num famoso quadro a óleo.
Em 1816, uma fragata francesa, a Medusa, naufragou na costa da África quando levava soldados e colonos para o Senegal. O incompetente comandante era um aristocrata que obtivera o posto por influências políticas. Quando o navio principiou a afundar, ele fugiu com seus amigos no único barco salva-vidas.
Cento e quarenta e nove homens e uma mulher construíram uma jangada improvisada, às pressas, e permaneceram à deriva no mar com sede, com fome, com brigas e mortes. Alguns foram jogados ao mar. Houve até canibalismo.
Após treze dias, sobreviveram apenas quinze, os quinze que viram a canhoeira Argus se aproximar. Esta visão maravilhosa, a visão do navio que os iria salvar, é retratada no quadro A jangada do Medusa.
Theodore Gericault põe na tela a paixão. A paixão daqueles homens pela vida. E esta é a boa paixão. A paixão pela vida é a boa paixão. Ora nos apaixonamos por uma das “belezas” desta vida, ora por outra. E de nenhuma perdemos de todo a paixão. E em nenhuma concentramos toda a nossa capacidade de se apaixonar. Porque a boa paixão é alterável.
Há um provérbio chinês que diz: “O lugar mais sombrio é sempre embaixo da lâmpada”. É quando nos sentamos para ler, para estudar, tendo a lâmpada a iluminar nossos textos e nossas reflexões. A paixão é melhor de ser vivenciada do que de ser pensada. “Embaixo da lâmpada” estragamos alguns prazeres.
Pois é... por definição, paixão é doença. Vem do latim: passione; pa de pathos, patologia. Nos dicionários, a paixão é descrita como um afeto dominador e cego, um sentimento levado a um alto grau de intensidade sobrepondo-se à lucidez.
Quando deslocamos nosso interesse desse fenômeno amplo e cheio de nuanças a que chamamos “vida” para um objeto, uma pessoa, uma atividade... entramos no campo da má paixão. Porque a boa paixão é espraiada. A má é concentrada.
NOTA 1 - Akeret R. Histórias de um terapeuta viajero. Urano. Barcelona, 1996.
NOTA 2 - Théodore Géricault (1791-1824), pintor francês, teve como mais famoso o quadro A jangada do Medusa, que está exposto no Museu do Louvre e mede 5x7 metros.
PAIXÃO: INÍCIO, MEIO, FIM
Encontro em minha estante Os sofrimentos de Werther. Seguidamente recomendo-o a meus alunos: um tratado sobre a semiologia da paixão. É um texto autobiográfico no sentido latitudinário, ou seja, inspira-se nos fatos e sentimentos vividos pelo autor sem reproduzi-los de forma exata (NOTA 3).
O livro foi publicado pela primeira vez em Leipzig em 1774. Napoleão, na expedição ao Egito, levou um exemplar e leu-o sete vezes. Johann Wolfgang Goethe pertence à história da literatura mundial. Sua obra-prima é Fausto, considerada por muitos críticos como uma das dez ou doze mais sublimes composições poéticas de todos os tempos.
Goethe (1749-1832) casou apenas aos 57 anos com Cristiane, com quem iniciara namoro aos 38 anos de idade. Consta que casou após levar um grande susto. Durante a invasão napoleônica, a cidade de Weimar foi assaltada, casas foram saqueadas. Dois soldados bêbados entraram na residência de Goethe, mas, graças à habilidade de Cristiane, foram embora carregando dois candelabros de prata e sem ferir ninguém. Cinco dias depois, ele, finalmente, oficializa sua relação com aquela com quem já tivera filhos e mantinha há tanto tempo uma relação instável e infiel.
Goethe sofria de repetidas paixões não correspondidas. Apaixonou-se por Carlota Buff, de olhos azuis, noiva de seu amigo Kestner, e foi rejeitado. Apaixonou-se por Maximiliane, de olhos negros, casada com um italiano estúpido que o enxotou. Ao criar os personagens para Os sofrimentos de Werther, construiu a mulher com o nome de uma de suas paixões e com a cor dos olhos da outra: Carlota, de olhos negros.
No livro, Werther escreve cartas a seu amigo Guilherme sobre a paixão não correspondida por uma mulher casada com um homem chamado Alberto. As paixões o impediram, por tanto tempo, de se casar e viver uma vida menos atormendada junto a Cristiane e aos filhos. Ao mesmo tempo, serviram-lhe de substrato para uma imortal obra literária. Com base nela, descrevo a meus alunos as fases da paixão.
Há um preâmbulo na maioria das paixões. Werther ainda não conheceu Carlota, a esposa de Alberto. Numa carruagem que o levava a um baile campestre, através de uma amiga comum, fica sabendo coisas de uma mulher... Nesta fase, é comum a indução. Ouve-se elogios a este ser que ainda não conhecemos. O fato de já ter alguém, em geral, valoriza-o ainda mais. É comum a afirmação: “Quando só, não atraio ninguém. Quando namoro alguém, chovem pretendentes”.
Ao mesmo tempo, antes do encontro, pode haver já algum informante que nos traz algum dado de realidade que borra um pouco nossa fabulosa imaginação. Há, sim, um pouco de sapo no príncipe.
Há algo que de pronto seduz e prende. Há um provérbio árabe que diz: “Fui à guerra e voltei ileso e dois olhos negros me mataram”. É interessante observar que um olhar vago que aparenta uma certa indiferença seduz um número grande de pessoas. Por que? Eu não sei.
Principiam os contatos: e-mails, telefonemas, jantares, pequenas viagens juntos. A doçura do começo: os dois, em êxtase, exploram a “perfeição” de um e de outro, a adequação de um para o outro: “É como se nos conhecêssemos desde sempre”. Às vezes, há um ou outro contratempo. Pergunta o comediante: “Há paixão que resista quando, maravilhado, o homem vai tomar champagne no sapato da mulher e se engasga com a palmilha do dr. School?”
O fim da paixão principia por pequenos ciúmes. Werther via Carlota descascar uma laranja e, por educação, dar alguns gomos a uma vizinha que a visitava: “A cada gomo... sentia o coração transpassado...” Há o momento em que, por um motivo qualquer, um dos dois acorda daquele sono, daquele delírio domesticado, e vê o outro como todos os demais o vêem.
Lembro-me de um amigo que sofria de súbitas e imensas paixões. Esforçava-se ao máximo e, em geral, conseguia iniciar namoro com sua nova “deusa”. Entretanto, o fim da paixão surgia rápido, em poucas semanas de encontros. Lembro-me da vez em que ele me pediu ajuda, já que a “vítima” era uma amiga que eu lhe havia apresentado. Era de manhã. Na noite anterior, havia levado-a para jantar e oferecera-lhe flores. Ao deixá-la em casa, aos beijos e juras de amor, algo no cabelo dela o perturbara. Pareceram-lhe os fios loiros artificiais. Não o eram. Enfim, foi para casa e dormiu como de costume. Porém, ao acordar deu-se conta: nada mais sentia por ela. Nada mais mesmo! O delírio havia passado. Via-a assim como eu, seu amigo, a via. “Jorge, por favor, vá até ela e diga que está tudo acabado”. Vocês atenderiam a esse pedido? Eu atendi. E, é claro, me dei mal. Minha amiga, sua ex-namorada, me disse poucas e boas.
O fim da paixão coloca-nos num vazio. Nosso cérebro parece oco, perdemos parte de nós mesmos. E é verdade, perdemos nosso imaginário. A realidade você nada pode fazer com ela. Porém, a imaginação é sua, não precisa perdê-la. Continue a imaginar príncipes e mais príncipes. Creio que foi Barthes quem escreveu: “Ao renunciar à paixão o sujeito se vê, com tristeza, exilado do seu imaginário”.
A cura é um lento e árduo processo de trazer de volta para si seu imaginário. De desgrudá-lo do outro ser. Afinal, não se tem a pretensão de “tratar” o imaginário de quem sofre, de fazê-lo sucumbir a um mundo só feito de realidades. Não! Trata-se apenas de desgrudá-lo do outro. Eu disse “apenas”? Disse-me Rita: “Depois dessa, não me apaixono mais”. Não precisei dizer: “Não faça isso contigo”. Sei que ela vai, sim, se apaixonar novamente. Provavelmente de forma diferente, com mais porcentagem na realidade do que na imaginação.
Não se apaixona, refiro-me à boa paixão, quem tem determinados traços negativos de personalidade. Lembra-se da personalidade esquizóide? Também quem sofreu uma desilusão amorosa muito impactante, um trauma psicológico e está submetido ao transtorno de estresse pós-traumático (NOTA 4).
Portanto, na paixão ocorre a seqüência: (A) preâmbulo; (B) encontros-desencontros; (C) início; (D) meio; (E) início do fim; (F) fim.
E há um depois da paixão. E no depois, encontraremos: (A) nada; (B) apego; (C) amor. Por amor na relação entenda-se uma grande empatia mútua.
NOTA 3 - Goethe JW. Os sofrimentos de Werther. Ediouro. 6ª ed. 1996.
NOTA 4 - Para se fazer o diagnóstico de estresse pós-traumático, além da evidência do trauma, deve haver uma recordação ou revivescência repetitiva e intrusa do evento em memórias, imaginação diurna ou sonhos.
DESCOMUNAL SAFADEZA
Rubens recebe o telefonema de Eliazar, que conta estar prestes a concluir um excelente negócio. Precisa apenas dar uma entrada para o produtor liberar a mercadoria. Em uma semana o comprador remeterá o valor e mais todo o lucro em cima. As esposas de ambos são irmãs, porém, como moram em cidades diferentes, convivem pouco. Eliazar mantém um ótimo padrão de vida e realiza grandes negócios.
A instituição financeira em que Rubens trabalha há mais de quinze anos concede o empréstimo desde que ele, Rubens, seja o avalista. “Podes avalizar sem problemas”, fez coro às palavras de Eliazar, a esposa, irmã da esposa de Rubens. Esta última não pôde opinar por estar em viagem e não poder ser contatada naquele momento. Tudo teria de ser muito rápido. Tão rápido que, na hora de liberar o dinheiro, pela falta de determinados documentos, inverteu-se o combinado: Rubens fez o empréstimo em seu nome e Eliazar assinaria depois como avalista.
As semanas passam, Eliazar não assina como avalista e o dinheiro não é devolvido. Eliazar nem atende mais aos telefonemas. Rubens vai a seu encontro. A muito custo, consegue ser recebido de passagem, quando Eliazar deixa apressado sua casa: “Negócios, tenho de resolver negócios urgentes. Depois conversamos”.
Passados dois meses de tentativas infrutíferas, Rubens perde a cabeça e ao telefone ofende Eliazar, que, dizendo-se magoado, corta relações. Para pagar a dívida e não perder o bom emprego de mais de quinze anos, Rubens terá de vender, entre outros bens, a própria casa e, mesmo assim, só saldará uma parte da dívida.
Rubens conversa com os sogros, afinal, eram sogros de ambos: acham condenável a atitude de Eliazar, não esperavam isso dele, mas... não querem, nestas alturas da vida, atritar-se com ninguém. A esposa de Rubens briga por telefone com sua irmã. Para completar: Eliazar, a esposa e os filhos adolescentes acabam de se mudar para um apartamento de cobertura. Já o haviam comprado na planta e, como ficara pronto... Alegam que, agora, o mercado não está bom, não conseguiriam vendê-lo para ressarcir parte da dívida. E, afinal, custa a Rubens ter um pouco de paciência e de educação?! De mais a mais, com que motivação o assoberbado Eliazar vai se dedicar a resolver o problema de alguém que o chama de ladrão? Sim, foi isso que a esposa de Rubens ouviu de sua irmã.
Após muita inambulação, Rubens pára e pensa: o que fazer? A propósito, você, o que você faria? Um jovem aluno, num impulso, respondeu: “Mataria Eliazar!”
Vamos aplicar o PSASA.
Qual o verdadeiro problema?
O problema: vítima de um golpe.
Quais sentimentos tal situação pode despertar?
Faça uma pausa para auscultar seu própio interior: que sentimento tomaria conta dele?
O sentimento mais perigoso: vontade de matar.
E a análise?
Qual sua análise? Faça uma longa pausa para refletir.
Vou fazer a minha análise a partir de Sartre quando diz: “O que importa não é o que fazem para mim, o que importa é o que eu faço disso que fazem para mim”. A questão não é ser enganado. Todos somos. Temos nossos momentos de bobeira. É claro que, se examinarmos depois do acontecido, diremos que Rubens foi precipitado e ingênuo. E foi. Com certeza, de agora em diante agirá diferente. Pagou para aprender, pagou muito, mas muito caro. Porém, repito, quem não tem seus momentos de bobeira? Depois que nosso time leva quatro a zero, apontamos uma série de bobeiras que poderiam ter sido evitadas. Mas durante “o jogo da vida” as coisas andam sem muito comando.
Matar Eliazar? Se o fizesse, Rubens acrescentaria outro problema a sua vida: o crime. A dívida continuaria intacta. Portanto, matar não se constitui numa ação para recuperar o dinheiro. Quem sabe é apenas uma tentativa de extravasar sua raiva, de recuperar seu narcisismo e sua auto-estima?
Haverá maneira mais eficaz e menos problemática que essa de recuperar o bem-estar interior? Nem que seja um truque mental? Que truque permitirá a Rubens não ser dominado por uma raiva destrutiva e seguir levando uma vida produtiva? Qual é o jeito de dizer para si mesmo que o beneficiará?
Várias soluções são possíveis. Vamos a uma, que consiste em dizer para si mesmo: (a) sou um ser humano como qualquer outro e, portanto, estou sujeito a momentos de bobeira; (b) condutas anti-sociais fazem parte de inúmeros exemplares de nossa espécie; fazem parte da natureza humana tais “desvios” e temos de conviver com eles assim como o fazemos com outros “desvios” da natureza, como enchentes, vendavais e terremotos, que “roubam” nossas casas e até mesmo nossas vidas; (c) vou recuperar meu narcisismo ferido e minha auto-estima diminuída à medida que levantar a cabeça e continuar a levar uma vida produtiva e digna; (d) valorizo ainda mais as qualidades humanas, o ser e não o ter; a vida é muito mais do que os ganhos e os negócios; (e) não preciso levar tudo tão a sério, na base do matar ou morrer.
E a ação?
Mais uma pausa para reflexão.
Agir no próprio interior e no exterior. Interiormente, constantemente reafirmar o truque mental escolhido e criar, se possível, outros melhores. Exteriormente, não desistir da cobrança da dívida, mas fazê-lo de forma sistemática, organizada e inteligente, que não provoque mais desgaste pessoal. Seja ela feita via judicial ou extra-judicial.
Não gostou desse jeito de lidar? Também não estou totalmente satisfeito, mas não o acho ruim. Apenas acredito que é possível modificá-lo para melhor. Devo analisar novamente o problema e ser mais criativo na busca de soluções. Agora, cá para nós, a vida nem sempre é fácil de ser vivida.
Exercícios
TREINANDO A EMPATIA:
DIZER PARA SI DE CASSANDRA.
“Quando ele tomou um gole de vinho, secou os lábios com o guardanapo de pano e conceituou: ‘Temos uma relação, sem dúvida, de boa qualidade’, senti profunda decepção. Desci as escadas do restaurante sem entender a profundidade da minha dor. Afinal, dissera apenas ‘relação de boa qualidade’. Enquanto as luzes dos outros carros vinham de encontro aos meus olhos eu procurava um truque para me livrar do sofrimento. Melhor se não tivesse dito nada sobre nós. O que me faria bem ter ouvido? ‘Temos um relacionamento fabuloso’. Sim, ‘fabuloso’ me faz bem. ‘Maravilhoso’ também soa bem. Saquei! Palavras que não classificam, nem definem um encontro amoroso são palavras que fazem bem, deixam-no em aberto, propenso a vôos ilusórios, doces, suaves... É terrível saber que seu relacionamento amoroso com alguém é como um queijo, como uma ignição de um automóvel, sujeito a um ‘controle de qualidade’. Qualidade? Boa, boa qualidade. Prefiro ouvir palavras que não dizem nada. Tenho certeza disso. Assim poderei sonhar... ter altas fantasias... melhores do que os namorados de boa qualidade que a gente encontra por aí!”
1. Coloque-se no lugar de Cassandra.
2. Deduza o que ela está pensando e sentindo.
3. Tente sentir um pouco o que ela sente.
4. Levante uma hipótese explicativa do sentir e do pensar de Cassandra.
PORTFÓLIO
Um jogador de futebol passa da linha do campo e bate com a cabeça no muro. O locutor de uma rádio pede que o repórter de campo avalie a gravidade da lesão, no que prontamente é atendido. “Felipe! Felipe!”, insiste o repórter com o jogador semidesmaiado. “Felipe! Que dia é hoje?” Felipe nada responde: “Infelizmente, senhores ouvintes, infelizmente o resultado da avaliação não é bom”. Há avaliações e avaliações. O repórter nem acabara de falar e Felipe já estava correndo em campo.
E o olhar dos outros? Sim, a forma como olham para mim é um indicativo. O olhar dos outros, em parte, é nosso espelho. Na infância, o olhar dos adultos dizia como eu estava vestido e como me comportava. Como ninguém nasce sabendo, os adultos, já vividos, é que sabiam me transmitir o jeito certo de vestir e de agir e tantas coisas mais. Porém, aos poucos, vou conhecendo a vida e, por mim mesmo, aprendendo o que é considerado adequado no meu meio. O meu espelho passa a ser o meu próprio olhar.
Todavia, o olhar dos outros continuará a ser um espelho. Não mais o grande espelho da vida. Mas um espelho. Afinal, existimos na relação com os outros. Até com uma pedra se passa algo assim. Uma pedra é igual a nada. A pedra que calça a porta é algo. A relação transforma a pedra. Se sou escritor, sou o escritor daqueles que me lêem, ou seja, sou escritor de fato na relação com meus leitores. É prudente, de tempos em tempos, observarmos como esse espelho está nos vendo.
A propósito, escreveu Robert Burns: “Ah, quisera que alguma divindade nos desse o dom/ De ver a nós mesmos como outros nos vêem!” (NOTA 1)
Por outro lado, há que se considerar o quanto é difícil para um ser humano avaliar outro ser humano de forma correta, pois desconhece suas vivências, seu aprendizado, sua genética. E também existe a sua própria subjetividade a distorcer a avaliação em acordo com seus afetos e interesses.
E a avaliação por comparação?
A comparação com os demais não é científica. Com os demais podemos apenas constatar diferenças. Ao atleta de corrida a pé, por exemplo, importa mais se o seu tempo baixou do que a colocação que tirou na prova. Pode ter chegado na frente, mas se seu tempo piorou... Quando comparativa, a avaliação de alguém deve ser realizada em relação a ele mesmo.
E a estratégia do portfólio?
A estratégia do portfólio (porta-fólio), possibilita o acompanhamento da construção do conhecimento durante o processo (NOTA 2).
Vamos registrar nossa habilidade tanto para nos relacionarmos e para lidar com problemas e vamos guardar o registro, assim como se faz na montagem de um álbum. Passadas algumas semanas, colocamos no nosso álbum mais um registro, e assim por diante. Após um ano, vamos observar nossa evolução.
O que registrar?
A relação pode ser difícil com algum parente. Digamos que ele se mostre sempre prepotente e dono da verdade, ou faz aquelas piadas inconvenientes e ri sadicamente. Anote como você lidou com ele na janta do Natal. Depois, anote como o fez em maio, por ocasião do aniversário de sua sogra. E assim por diante.
Observe sua criatividade. Se você assumiu como síndico, anote como lidou com os problemas surgidos na primeira reunião do condomínio e na segunda e na...
NOTA 1 - Robert Burns (1759-1796), romancista escocês, entre outros, escreveu Poems, Chiefly in the Scottish Dialect e Tam o’Shanter. Faleceu com apenas trinta e seis anos de febre reumática.
NOTA 2 - A estratégia do portfólio é usada há bastante tempo no ensino do primeiro e do segundo grau e, mais recentemente, na educação superior. Sugiro o livro: Anastasiou & Alves. Processos de ensinagem na universidade. Ed. Univille, 2003.